Carta do Professor Sylvain Bromberger ao Coro de Câmara da Universidade de Lisboa
Eu, os meus pais e os meus dois irmãos fugimos de Antuérpia, na Bélgica, no dia 13 de Maio de 1940, com muito pouco tempo de avanço sobre os exércitos alemães que, três dias antes, tinham atacado de surpresa a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo. Deixámos a nossa casa muito apressadamente, sem saber o que nos iria acontecer a seguir, mas certos de que, enquanto judeus, a nossa sobrevivência dependia de não nos deixarmos cair nas garras dos alemães. Depois de uma série de aventuras e desventuras, acabámos por estar a 22 de Julho em Bayonne, em França, no meio de uma enorme multidão de refugiados em frente do consulado português. Petain tinha acabado de se render a Hitler, e a parte de França em que nos encontrávamos seria em breve ocupada pelo exército alemão. Ainda consigo sentir o nosso medo e desespero: a fila à nossa frente era assustadoramente comprida, não parecia mexer-se, e os alemães vinham a caminho. Os detalhes do que aconteceu a seguir estão já um pouco difusos na minha memória, mas sei que a certa altura os nossos passaportes foram levados para dentro do consulado, e pouco tempo depois trouxeram sacos cheios de passaportes para a pequena praça perto do consulado. Os nossos passaportes, devidamente carimbados com vistos portugueses, estavam entre eles. Desse momento lembro-me perfeitamente! Não tinha havido quaisquer formalidades ou entrevistas, atrasos ou condições. Com aqueles vistos, conseguimos uma autorização para atravessar Espanha, saindo de França apenas um pouco à frente dos alemães, chegando assim a Portugal em segurança. A partir daí acabámos por partir para os Estados Unidos. Cerca de três anos mais tarde eu voltei à Europa como soldado americano, e tive a oportunidade de ver com os meus próprios olhos o destino de que teríamos sido vítimas se não tivéssemos fugido.
Ainda que eu nunca me tivesse esquecido daqueles momentos em frente do consulado português em Bayonne, apenas tive conhecimento do que tinha de facto acontecido ali em Maio de 1986. Foi então que, através de um artigo no New York Times e troca de correspondência com John Paul Abranches, eu soube que aqueles vistos portugueses, que provavelmente salvaram as nossas vidas, tinham sido emitidos contra as ordens do governo de Salazar, e apenas porque de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordeaux, tinha vindo a Bayonne naquele dia e ordenado a uma equipa relutante que o ajudasse a emitir vistos para todos os refugiados que estavam à frente do consulado. Também só soube nesse dia que de Sousa Mendes tinha pagado bem caro por um acto tão belo e altruísta. Como escrevi na introdução de um livro que lhe dediquei, "Eu nunca o vi, nem ele a mim." Os meus pais morreram ambos totalmente inconscientes do que ele sacrificara por eles, e provavelmente nunca terão chegado a ouvir sequer o nome dele.
Há algum tempo, John Paul Abranches pediu-me que explicasse como o ter recebido um visto em 1940 afectou a minha vida. Consegui responder-lhe em muito poucas palavras. "Tenho agora oitenta e um anos, sou Professor Emeritus no M.I.T., casado com uma mulher maravilhosa há cinquenta anos, pai de dois filhos que são para mim fonte de grande alegria e orgulho. Tenho tido uma vida muito rica. Se não fosse o feito dele (de Sousa Mendes), eu teria muito provavelmente morrido miseravelmente num campo de concentração antes de chegar sequer aos dezassete."
Professor Emeritus (
http://web.mit.edu/philos/www/bromberger.html)– Dept. de Linguística e Filosofia
M.I.T. - Massachusetts Institute of Tecnologie, Cambrige, EUA (
http://www.mit.edu)