Voltámos-nos a encontrar no funeral do teu pai. Muitos anos haviam passado desde a ultima vez que te vi. O vestido preto pelo joelhos ficava-te bem apesar de realçar a tua figura magra. Eu de casaco e gravata preta. Tentavas esconder as tuas mãos nervosas por detrás do teu corpo. O dia cinzento adequava-se à ocasião, lembro-me de pensar como o campo relvado se encontrava brilhante. Levavas a cara branca como uma mascara com o teu cabelo solto brincando ao vento. Os teus olhos vazios, a única ocasião que os tinha visto assim foi quando te fodi quando amavas outro.
Aproximei-me de ti passando a fila de mulheres tagarelas que comentavam a meia voz frases feitas de ocasião. Houve um instante que não me reconheceste, a minha cara mais magra, as linhas à volta dos olhos, a minha barba de 3 dias por fazer, o meu cabelo despenteado, como se reconheces alguns traços mas não conseguisses ligar as peças. Levei-te pelo braço para longe dali, o teu corpo não resistiu. O vento roçou as nossas pernas e lembro de pensar como devias sentir frio. Olhaste para trás e larguei-te a mão, parámos. Voltei-me para ti quando levantaste os olhos do chão e olhaste para mim. Não devia estar ali e sabia que não devia estar ali, não era o meu lugar.
As palavras fugiram-me, não havia nada para dizer, não havia nada que pudesse dizer, nada que fizesse sentido. As lágrimas corriam agora pela minha cara enquanto te olhava suspenso e isso pareceu tardar uma eternidade. Levaste a tua mão direita à minha cara fria enquanto tentava mantê-la erguida. Agarrei a tua mão pelo pulso, fechei forte e beijei-a.
Mais forte que Orfeu consegui percorrer o caminho até o carro sem olhar para trás. Já no carro com o rosto ainda molhado pensei na falta de sentido da existência, ou melhor, o sentido da existência é apenas existir. Soube que não devia estar ali, que não estive ali e que nunca vou estar ali.