sexta-feira, março 21, 2008

Anjo Negro

Voltámos-nos a encontrar no funeral do teu pai. Muitos anos haviam passado desde a ultima vez que te vi. O vestido preto pelo joelhos ficava-te bem apesar de realçar a tua figura magra. Eu de casaco e gravata preta. Tentavas esconder as tuas mãos nervosas por detrás do teu corpo. O dia cinzento adequava-se à ocasião, lembro-me de pensar como o campo relvado se encontrava brilhante. Levavas a cara branca como uma mascara com o teu cabelo solto brincando ao vento. Os teus olhos vazios, a única ocasião que os tinha visto assim foi quando te fodi quando amavas outro.

Aproximei-me de ti passando a fila de mulheres tagarelas que comentavam a meia voz frases feitas de ocasião. Houve um instante que não me reconheceste, a minha cara mais magra, as linhas à volta dos olhos, a minha barba de 3 dias por fazer, o meu cabelo despenteado, como se reconheces alguns traços mas não conseguisses ligar as peças. Levei-te pelo braço para longe dali, o teu corpo não resistiu. O vento roçou as nossas pernas e lembro de pensar como devias sentir frio. Olhaste para trás e larguei-te a mão, parámos. Voltei-me para ti quando levantaste os olhos do chão e olhaste para mim. Não devia estar ali e sabia que não devia estar ali, não era o meu lugar.

As palavras fugiram-me, não havia nada para dizer, não havia nada que pudesse dizer, nada que fizesse sentido. As lágrimas corriam agora pela minha cara enquanto te olhava suspenso e isso pareceu tardar uma eternidade. Levaste a tua mão direita à minha cara fria enquanto tentava mantê-la erguida. Agarrei a tua mão pelo pulso, fechei forte e beijei-a.

Mais forte que Orfeu consegui percorrer o caminho até o carro sem olhar para trás. Já no carro com o rosto ainda molhado pensei na falta de sentido da existência, ou melhor, o sentido da existência é apenas existir. Soube que não devia estar ali, que não estive ali e que nunca vou estar ali.

2 comentários:

M disse...

No funeral do meu pai, olhei para trás, em busca da mão que antes amparava a minha. Já não havia motivo para que essa mão ali estivesse. Ele nunca viria, eu sabia. Mas ao mesmo tempo isso não me impediu de olhar para ver se, naquele dia negro (que ainda agora volvidos 9 meses continua a não fazer sentido) ele ali estaria. Te-lo ali, mesmo depois de toda a nossa história seria a comprovação de que o que existiu um dia foi real para ambos.

As tuas palavras, fizeram-me lembrar da minha vida.

Unknown disse...

Olhamos para trás para ver o que não está lá. Nunca deixamos de olhar, porque mesmo que real, o que existiu estará sempre em nós proprios.

Obrigado eu pelas tuas palavras.

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